No dia 25 de Abril de 1974 estava a cumprir o serviço militar no quartel de Lanceiros 2, na Calçada da Ajuda, em Lisboa, como polícia militar.
Pouco mais de um mês antes, a 16 de
Março, tinha havido uma tentativa de derrubar o regime fascista, a que só o
Regimento das Caldas tinha aderido. Por serem poucos, estes militares foram facilmente
interceptados à entrada de Lisboa e alguns ficaram presos no RAL1, donde só sairiam
no dia 25 de Abril.
Sendo eu polícia militar, fui destacado para aquele quartel, para ficar de
guarda aos militares que tinham sido presos. Como já andava nas lutas
antifascistas há alguns anos, aproveitei a oportunidade para tirar algum
partido da situação. Como é óbvio, não foi tarefa fácil conquistar a confiança
daqueles militares. Mas, cerca de duas semanas depois, com todo o cuidado que
era exigido na altura (nem nos próprios colegas se podia confiar), consegui
convencer alguns de que estava do lado deles. Cedo me apercebi que o General
Spínola estava, de certo modo, envolvido naquela intentona. Coisa que não me
agradou muito, mas nem por isso deixei de me interessar pelos acontecimentos.
Spínola tinha escrito o livro “Portugal e o Futuro”, cuja publicação tinha sido
autorizada por Marcelo Caetano um ou dois meses antes, o que, só por si, gerava
algumas suspeitas. Na realidade, Spínola não era a favor da independência dos
povos colonizados, embora defendesse o fim da guerra colonial. Era, antes, apologista
de uma espécie de federação, em que as colónias continuariam a fazer parte de
Portugal. De qualquer maneira, o livro, que, se bem me lembro, esgotou
imediatamente, serviu para despertar muitas consciências, tanto nos meios
militares como civis. Como gerou alguma polémica, era tema de discussão à mesa
do antigo café Monte Carlo, onde se reunia muita gente de esquerda e que, de
vez em quando, era alvo de rusgas. Acho que Marcelo Caetano, ao autorizar a
publicação do livro, tinha em mente dar a ideia de que havia alguma liberdade
(não estivéssemos nós na chamada Primavera Marcelista). Mas teve azar. Virou-se
o feitiço contra o feiticeiro. Mas, adiante.
Devido a várias conversas com os militares detidos no RAL1 e com os quais
consegui travar alguma amizade, foi possível aperceber-me que aquilo não ficava
por ali. Que, mais tarde ou mais cedo, uma outra tentativa de derrubar o
governo iria ter lugar. E, com o passar dos tempos, fiquei convencido, que, à
segunda volta, iria ser bem-sucedida. Era evidente que o povo já estava farto e
que bastava um pequeno rastilho para provocar um grande fogo. Por esse motivo,
a partir do início de Abril, passei a dormir no quartel, coisa que não fazia já
há muito tempo, a não ser que estivesse de serviço. Sempre à espera que, em
qualquer altura, alguma coisa acontecesse.
E aconteceu. Por volta das 3 da manhã do dia 25 de Abril, fui acordado
bruscamente por um colega (ou “camarada”, como era hábito chamar-se). Note-se
que este colega era também camarada da luta antifascista.
- Acorda, Filipe, há um golpe de estado!
- E quem é que está à frente disso? – perguntei, já adivinhando a resposta.
- Consta que é o Spínola.
Como estava cheio de sono, pois tinha adormecido cerca de duas horas antes, respondi, com tom irónico:
- Então, deixa-me dormir, porra.
- E quem é que está à frente disso? – perguntei, já adivinhando a resposta.
- Consta que é o Spínola.
Como estava cheio de sono, pois tinha adormecido cerca de duas horas antes, respondi, com tom irónico:
- Então, deixa-me dormir, porra.
A verdade é que, quase ao mesmo tempo que dizia
isto, levantei-me e comecei a indagar sobre o que tinha acontecido. Havia
poucos pormenores. Na rádio já se ouviam indícios de que alguma coisa estava a
acontecer e começavam a ser transmitidos comunicados do MFA. Mas os pormenores
eram poucos, embora já se ouvissem muitas canções do Zeca Afonso, Letria,
Adriano, José Mário Branco, etc. Seja como for, vivi aquele dia intensamente e
com alguma esperança de que as coisas iriam mudar.
O comandante de Lanceiros 2 não se queria render. A porta de armas continuava
fechada. Cá fora, na Calçada da Ajuda, uma multidão exigia a nossa rendição.
Foi-nos transmitido pela população que, nas ruas de Lisboa, reinava o caos,
principalmente porque o povo já não respeitava a polícia civil e havia pouca
polícia militar na rua. Por isso, era imprescindível que saíssemos do quartel o
mais depressa possível. Passámos toda a manhã no quartel, com as portas
fechadas. Centenas de homens frustrados, como prisioneiros, na parada, sem
saber o que fazer. Discutiam-se todas as hipóteses. As dúvidas eram muitas. A
esmagadora maioria apoiava o golpe. O sentimento de impotência era
constrangedor. Os fascistas ainda conseguiram usar o quartel para servir de
refúgio aos ministros do exército e da defesa. E foi na tarde do dia 25 de
Abril, por volta das 3 horas, que assisti à cena mais impressionante e aquela
que mais me marcou em todos os eventos que se seguiram: como os ânimos dos
militares de Lanceiros 2, principalmente de um ou dois capitães, dos alferes, dos
furriéis e praças, já estavam muito exaltados devido ao facto de o comandante
não se render, o governo fascista, ainda em funções, decidiu que seria mais
seguro retirar os ministros refugiados naquele quartel. Um helicóptero pousou
na parada para levar os ministros para outro lado (suponho que iam para
Monsanto). Ao mesmo tempo que os dois ministros se dirigiam para o helicóptero,
começámos todos a ir ao paiol, arrecadação onde eram guardadas as armas e
munições, e, contra todas as regras e sob o protesto do 1º cabo que aí estava
de guarda, fomos buscar todo o tipo de armas que encontrámos, principalmente,
metralhadoras G3 e pistolas Walter. Éramos mais de 400 homens. Dirigimo-nos
para o helicóptero, rodeando-o. Quando o helicóptero levantou voo, ouviu-se um
som que eu nunca tinha ouvido antes e que ficou na minha cabeça durante muito
tempo: o som de mais de 400 armas a carregar as balas ao mesmo tempo. As armas
foram apontadas para o helicóptero. Mas nenhum militar teve a coragem de
disparar. Se só um tivesse disparado, seriam centenas de balas a atingir o
helicóptero. Entretanto, já nos tinha chegado aos ouvidos que, no Cristo-Rei,
se encontrava um ou mais carros de combate com os canhões apontados para o
nosso quartel e prontos a disparar, caso não se concretizasse a rendição. Quando
o helicóptero se afastou, reparo que, ao meu lado, um furriel chorava como um
bebé. A revolta era enorme. A frustração indiscritível. Abracei-me a ele, ao
mesmo tempo que, aos soluços, me dizia: “Temos
que fazer qualquer coisa. Armas já nós temos.” Foi nessa altura que, acompanhados
de um capitão e um alferes, nos dirigimos ao quarto do comandante para o
obrigarmos a render-se. A tarefa foi mais fácil do que tínhamos pensado. O “velhote”,
logo que viu 4 armas apontadas para ele, telefonou para a porta de armas, dando
autorização para abrir as portas do quartel. Não sei o que se passou depois com
o comandante, porque só me lembro que, ao ouvir o telefonema, saí a correr para
a parada, gritando: “Já se rendeu, já se
rendeu!”. A confusão foi grande e só depois de várias peripécias e mais de
três horas passadas é que as portas do quartel se abriram. E o cenário foi
deslumbrante! Ao som das palmas de centenas de pessoas que se encontravam na
Calçada da Ajuda e dos gritos de “O Povo está com o MFA!”, os jipes e outras
viaturas da Polícia Militar, iam saindo do quartel. Uns para patrulhar as ruas,
outros para o Quartel do Carmo e para outros locais onde eram necessários. A
mim calhou-me ir para junto da sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso. Só
sei que passei a noite, no Largo de Camões, quase sempre debaixo de um Unimog,
para me proteger dos tiros que, esporadicamente, eram disparados do telhado da
sede da PIDE.
Não fui a casa durante quase uma semana. Ia ao quartel, uma vez por dia, tomar
um banho e dormir umas (poucas) horitas. Todo o tempo era pouco para andar na
rua, no meio da multidão, que nos tratava com um carinho que nunca mais senti.
Comida não faltava. O povo trazia-nos tudo, desde sopa a feijoada, embora nós
insistíssemos que só queríamos sandes, porque eram mais fáceis de comer em
andamento. E, caso curioso, quando agradecíamos, a resposta era quase sempre a
mesma: “Nós é que estamos agradecidos”.
O primeiro “Dia do Trabalhador” em liberdade (1º de Maio) foi um dia memorável.
Nunca tinha visto tanta gente nas ruas. E, mais importante, nunca tinha visto
tanta alegria e tanta força popular. A panela de pressão tinha rebentado. O
poder era, nitidamente, do povo.
E o resto é história.
Viva a Liberdade! Viva a democracia!
25 de Abril, sempre!
Sem comentários:
Enviar um comentário