sexta-feira, 25 de abril de 2014

Há um Abril a morrer em Portugal

Roubaram-me Abril. De mansinho e a pouco e pouco foram-me roubando Abril. Aquele Abril que eu e tantos outros ajudámos a construir, a pouco e pouco, até ao dia do cravo na ponta da espingarda. E que dia aquele foi!


Não fora o cravo a entupir o cano, estaríamos agora a celebrar mais um ano de liberdade, de igualdade e de justiça social. Se, há 40 anos, estes valores eram um sonho, hoje não passam de um pesadelo. Porque não sabemos quanto mais tempo vão durar. Não sabemos o futuro. Mas o futuro (ainda) está nas nossas mãos. Desde há alguns anos que nos têm vindo a roubar alguns dos sonhos que, naquela madrugada de Abril, o povo tornou realidade. Tudo por causa do cravo que entupiu o cano da espingarda. Tivéssemos usado uma rosa, sem pétalas mas cheia de espinhos, e tudo teria sido diferente. Lembro-me de ter avisado, na altura.
Aqueles por quem tivemos tolerância hibernaram durante algum tempo. Esconderam-se mas não desapareceram. Nos últimos anos regressaram e são intolerantes. Vieram para destruir a democracia e o estado social. E a liberdade. Sim, a liberdade, porque as pessoas já têm medo de falar contra eles, mesmo sabendo que são maus, porque, se falarem, eles têm mil e uma maneiras de retaliar. E as pessoas sabem que, à primeira oportunidade, eles são implacáveis. Não nos prendem, mas roubam-nos o trabalho, roubam-nos os direitos, roubam as pensões e os ordenados a quem (ainda) os tem. Roubam-nos a liberdade. Não são ditadores, são pior que isso. Sabem ao que vêm e nós sabemos ao que eles vêm. Prendem-nos sem nos encarcerarem, para que, nas próximas eleições possamos votar neles. E nós votamos. Sempre neles. Sempre nos mesmos, há quase quarenta anos. Tal como votámos nos ditadores antes deles, durante mais de quarenta anos.
Quisemos ser heróis e fazer uma revolução sem sangue. O Miguel Portas, que faleceu há dois anos e que sempre foi um defensor dos ideais de Abril, um dia escreveu ou afirmou que “as grandes lutas se fazem com pessoas normais, não com heróis”. E, como sempre, tinha razão. Pessoas normais teriam disparado primeiro e, só depois, entupiriam, com cravos, o cano da espingarda. Armámo-nos em heróis e saímos derrotados. Armámo-nos em povo de brandos costumes e eles vingaram-se. E continuam a vingar-se do bem que lhes fizemos (ou do mal que não lhes fizemos). Agora, querem consensos para tornar a vingança mais democrática. E nós, espantosamente, deixamos!
Há 40 anos o povo saiu à rua. Éramos milhões. Ouviam-se gritos à liberdade e à democracia. Ouviam-se palavras de ordem contra o regime fascista, que dava o último suspiro. Ouviam-se palavras de ordem contra as potências estrangeiras que, quais abutres, pairavam sobre Portugal, prontos a atacar à primeira oportunidade. “Nem NATO nem Pacto de Varsóvia, independência nacional!” - gritavam milhões de pessoas. Quatro décadas depois, é fácil verificar que de independência nacional pouco ou nada nos resta. Os abutres poisaram e estão-nos a devorar. Os nossos governantes são lacaios dos mercados e dos países mais poderosos, que os controlam. Abril está cada vez mais longe.
Mas esta escalada contra as conquistas de Abril (ainda) pode ser interrompida. Assim o povo queira. Assim o povo se decida a lutar, como fez há 40 anos. Eles estão-nos a roubar Abril e, para a semana, é Maio.
E que ninguém se iluda. Os cravos, a serem usados, é na lapela. Para o que falta, usemos rosas sem pétalas e com muitos espinhos.
De aço.

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