Roubaram-me Abril. De mansinho e a pouco e pouco foram-me roubando Abril. Aquele Abril que eu e tantos outros ajudámos a construir, a pouco e pouco, até ao dia do cravo na ponta da espingarda. E que dia aquele foi!
Não fora o cravo a entupir o cano, estaríamos
agora a celebrar mais um ano de liberdade, de igualdade e de justiça social.
Se, há 40 anos, estes valores eram um sonho, hoje não passam de um pesadelo.
Porque não sabemos quanto mais tempo vão durar. Não sabemos o futuro. Mas o
futuro (ainda) está nas nossas mãos. Desde há alguns anos que nos têm vindo a
roubar alguns dos sonhos que, naquela madrugada de Abril, o povo tornou
realidade. Tudo por causa do cravo que entupiu o cano da espingarda. Tivéssemos
usado uma rosa, sem pétalas mas cheia de espinhos, e tudo teria sido diferente.
Lembro-me de ter avisado, na altura.
Aqueles por quem tivemos tolerância hibernaram durante algum tempo.
Esconderam-se mas não desapareceram. Nos últimos anos regressaram e são intolerantes.
Vieram para destruir a democracia e o estado social. E a liberdade. Sim, a
liberdade, porque as pessoas já têm medo de falar contra eles, mesmo sabendo
que são maus, porque, se falarem, eles têm mil e uma maneiras de retaliar. E as
pessoas sabem que, à primeira oportunidade, eles são implacáveis. Não nos
prendem, mas roubam-nos o trabalho, roubam-nos os direitos, roubam as pensões e
os ordenados a quem (ainda) os tem. Roubam-nos a liberdade. Não são ditadores,
são pior que isso. Sabem ao que vêm e nós sabemos ao que eles vêm. Prendem-nos
sem nos encarcerarem, para que, nas próximas eleições possamos votar neles. E
nós votamos. Sempre neles. Sempre nos mesmos, há quase quarenta anos. Tal como
votámos nos ditadores antes deles, durante mais de quarenta anos.
Quisemos ser heróis e fazer uma revolução sem sangue. O Miguel Portas, que
faleceu há dois anos e que sempre foi um defensor dos ideais de Abril, um dia
escreveu ou afirmou que “as grandes lutas se fazem com pessoas normais, não com
heróis”. E, como sempre, tinha razão. Pessoas normais teriam disparado primeiro
e, só depois, entupiriam, com cravos, o cano da espingarda. Armámo-nos em
heróis e saímos derrotados. Armámo-nos em povo de brandos costumes e eles
vingaram-se. E continuam a vingar-se do bem que lhes fizemos (ou do mal que não
lhes fizemos). Agora, querem consensos para tornar a vingança mais democrática.
E nós, espantosamente, deixamos!
Há 40 anos o povo saiu à rua. Éramos milhões. Ouviam-se gritos à liberdade e à
democracia. Ouviam-se palavras de ordem contra o regime fascista, que dava o
último suspiro. Ouviam-se palavras de ordem contra as potências estrangeiras
que, quais abutres, pairavam sobre Portugal, prontos a atacar à primeira
oportunidade. “Nem NATO nem Pacto de Varsóvia, independência nacional!” -
gritavam milhões de pessoas. Quatro décadas depois, é fácil verificar que de
independência nacional pouco ou nada nos resta. Os abutres poisaram e estão-nos
a devorar. Os nossos governantes são lacaios dos mercados e dos países mais
poderosos, que os controlam. Abril está cada vez mais longe.
Mas esta escalada contra as conquistas de Abril (ainda) pode ser interrompida.
Assim o povo queira. Assim o povo se decida a lutar, como fez há 40 anos. Eles
estão-nos a roubar Abril e, para a semana, é Maio.
E que ninguém se iluda. Os cravos, a serem usados, é na lapela. Para o que
falta, usemos rosas sem pétalas e com muitos espinhos.
De aço.
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