segunda-feira, 21 de abril de 2014

"Nem que sejam cinco cêntimos"


Há dias, bateram-me à porta. Tudo normal, já que, de vez em quando, alguém me bate à porta.

Tudo normal até ao momento em que alguém abriu a porta e se deparou com um mendigo (sim, mendigo) que, com ar triste e envergonhado, pediu ajuda.
- Nem que sejam cinco cêntimos – disse ele.
Cinco cêntimos, disse ele. Cinco cêntimos! Não houve nenhuma espécie de diálogo com ele, porque o seu ar abatido e envergonhado transmitiu a sensação de que não estaria disposto a encetar qualquer conversa. Foi-lhe dado um pouco mais do que ele tinha pedido e ele, agradecendo, continuou para a casa do meu vizinho.
Quando a porta se fechou comecei a pensar no que tinha acabado de acontecer. Aquele pedinte não era igual a alguns que, de vez em quando, aparecem e que nos deixam algumas dúvidas se, realmente, necessitam de andar a pedir. Embora eu ache que ninguém pede pelo mero prazer de pedir, acho que me entendem quando digo que, por vezes, ficam algumas dúvidas.
Mas o mendigo que, há dias, bateu à minha porta era diferente. “Nem que sejam cinco cêntimos” – pediu ele! E aquele pedido chocou-me e tive um momento “Déjà Vu”. De repente, passaram-me pela cabeça muitos episódios da minha vida de criança e juventude, em que, várias vezes por mês, passavam pela minha aldeia muitos mendigos, que iam batendo às portas pedindo comida e algum dinheiro. Alguns vinham várias vezes e já eram conhecidos. Um ou outro aleijado, um ou outro cego, mas todos com um problema comum: a fome. Nunca me hei-de esquecer de um em particular, que, não tendo pernas, se deslocava em cima de uma tábua com rodas, que ia empurrando com as mãos no chão, protegidas por um pedaço de madeira. Já lá vão cinquenta anos ou mais e ainda me lembro da cara do senhor!
Estes mendigos (pobrezinhos, como na altura eram chamados) eram pessoas que aceitavam e agradeciam tudo o que lhes pudessem dar: desde alguns tostões até um prato de caldo, que, sofregamente, comiam, como bem me lembro de ver em casa dos meus pais, que, não sendo ricos e vivendo, eles próprios, com algumas dificuldades, tentavam sempre matar a fome a quem lhes batesse à porta.
Vivíamos em ditadura e havia muita fome.
O senhor que, há dias, bateu à minha porta e pediu “nem que sejam cinco cêntimos” fez-me recordar esses tempos de há cinquenta anos. Mas, pior que isso, trouxe até à minha porta uma realidade que eu sabia que existia e que já tinha observado, mas nunca de tão perto, desde há cinquenta anos.
Vivíamos em ditadura e havia muita fome.
Há dias, li um post no Facebook em que o autor afirmava que, hoje, “o empobrecimento real é perto do zero”! Ou o autor do post vive num país diferente do meu ou sofre de uma doença a que eu chamo “partidarite aguda”, escrevendo tudo o que lhe vem à cabeça para defender as políticas do governo, por mais ridículo, irreal e mentiroso que possa ser. A julgar por outros posts que o mesmo autor escreve, é, para mim, evidente, que a última hipótese é a correcta. Infelizmente, não é o único. Outros há que, vivendo de barriga cheia, continuam a negar que existem cada vez mais pobres. Apoiam, cegamente, a destruição do estado social pelo simples facto de que não precisam dele. Negam o que vêem à sua volta, o que lêem nos jornais ou o que ouvem nas notícias. Afirmam, sem qualquer espécie de pudor ou sensibilidade, que a pobreza, o desemprego e a emigração são apenas danos colaterais de uma austeridade necessária, porque “vivíamos acima das nossas possibilidades”. Dizem que não há alternativa, embora saibam que isso não é verdade. Não passam de papagaios de um governo que, subjugando-se aos “mercados” e fazendo das nossas vidas um inferno, nos promete o paraíso, dizendo, sempre, que é “para o ano”. Mas esse ano é sempre adiado e o inferno continua, cada vez pior. São pessoas a quem a fome nunca bateu à porta, pedindo “nem que sejam cinco cêntimos”, como me aconteceu, há dias.
Mais ou menos na mesma altura em que os capitães de Abril foram proibidos de falar na Assembleia da República! Talvez porque houvesse receio de que falassem no número de pobres, que, nos últimos anos, tem aumentado em Portugal (mais de dois milhões de pessoas vivem no limiar da pobreza). Talvez porque houvesse receio de que falassem do desemprego, que, nos últimos anos, tem aumentado em Portugal (mais de um milhão de desempregados). Talvez porque tivessem receio de que falassem da emigração, que, nos últimos anos, tem aumentado em Portugal (mais de cem mil pessoas emigram, por ano). Talvez porque houvesse receio de que falassem da destruição do estado social, da destruição da escola pública, da destruição do Serviço Nacional de Saúde. Talvez porque houvesse receio de serem desmascarados, ao vivo e a cores, na “Casa da Democracia”, onde a maioria desrespeita, constantemente, a democracia, que, há quarenta anos, conquistámos, com a ajuda dos mesmos Capitães de Abril, que, agora, proíbem de falar.
Há dias, alguém me bateu à porta e pediu “nem que sejam cinco cêntimos”. Era Sexta-feira. Santa. Para alguns.
Vivemos em “democracia” e há muita fome.
Cantata da Paz
Francisco Fanhais

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